Algodão, insolação e a marmita do Pai

A dignidade das lembranças que sempre retornam para o mesmo lugar.

Uma menina de 4 ou 5 anos, com o entusiasmo de uma criança qualquer quando vai brincar, sai de sua casa em companhia de sua mãe e irmã mais velha para um dia diferente.

A mãe carrega bolsas com pedaços de lençol velho, uma garrafa de café, pão caseiro já cortado untado com margarina, uma marmita de “bóia-fria” contendo o suficiente para as três passarem o dia e muito desejo de voltar para casa com novidades para o marido, também, “bóia-fria”.

Para as crianças é uma festa. Para a mãe: uma colheita de algodão. A roça é linda! As flores abertas transformadas em algodão. O trabalho é para muitos na mesma situação daquela mãe. Conversas animadas se espalham pelas fileiras das pequenas árvores, o encarregado, filho do dono da roça caminha supervisionando o serviço, afinal, não se pode deixar algodão para trás.

As pessoas com os sacos amarrados à cintura arrastam folhas, gravetos e tudo o mais por onde o fardo passa. No meio da roça está a balança. Velha e enferrujada recebe os fardos repletos de algodão. A renda do trabalho depende do peso do algodão colhido. Feita a pesagem o saco é despejado na caçamba de um pequeno caminhão ali estacionado, e depois retorna para a fila dos sacos vazios à espera de outro trabalhador.

AlgodãoA mãe, numa tentativa de proteger as crianças, amarra um pedaço de lençol velho em quatro pés de algodão, dos mais fortes que conseguir encontrar. Embaixo da “cabaninha” estão as crianças, a garrafa de café, a comida e o lanche. Mas, as crianças não permanecem por muito tempo ali, correm, brincam com o encarregado, se juntam com outras crianças para a festa. Não muito tempo depois inicia-se os sintomas de insolação. Febre, tontura, vômito… Enfim, a mãe desesperada tem de tomar uma atitude rápida que não estava em seus planos: pegar as meninas, antes do dia de trabalho acabar, juntar os cacarecos esparramados por baixo dos pés de algodão e partir para a casa.

Planos frustrados. Não poderá contribuir no orçamento doméstico, continuará recebendo diariamente seu esposo cansado do sol, enfraquecido pela força exercida no facão no canavieiro, exaurido de quebrar pedras, e as vezes, machucado direto para o hospital, pelo facão, foice, cólica renal e etc.

Ao mesmo tempo, não pode se distrair com a frustração. É preciso acolher duas crianças febris, chorosas e sem forças para caminhar.

A casa oferecia os cuidados básicos que precisavam: banho gelado e descanso, protegidas do calor e da exposição solar.

O tempo passou. As crianças cresceram. Não precisam mais ir para a roça. O pai está aposentado, mas não parou de trabalhar. É zelador da igreja que frequenta. A mãe já passou por momentos bem piores mas está bem. Graças a Deus o tempo passou.

A  menina mudou pouca coisa. Cresceu, amadureceu, mas sente saudades. Da marmita do pai, da água da garrafa térmica, das brincadeiras na roça.

A menina é caçula. Inúmeras vezes esperava o pai voltar da roça para trazer-lhe o que sobrara da marmita. Não porque não havia comida em casa, mas porque, para a caçula, aquela era a comida mais gostosa! Até hoje o cheiro da marmita e o pão enrolado num papel visitam a lembrança da menina.

Enquanto os adultos lutavam pela sobrevivência a menina curiosa que era, acompanhava as conversas, prestava atenção e, de certa forma, sofria com eles. Um dia ela ia sair dali, mas as lembranças sempre retornariam para o mesmo lugar.

2 comentários em “Algodão, insolação e a marmita do Pai”

  1. Perfeito! Como as coisas simples se tornam essenciais durante a vida! Lembro de você me contando sobre a marmita e de como ficava a espera da mesma, ao final do dia. E como seu pai era generoso pois deixava sempre um pouco da comida. Como a infancia é maravilhosa serve de exemplo e superação para o futuro!

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